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    Nasci, eles me pegaram, me examinaram, me diagnosticaram. Me vestiram, mesmo pequena minhas roupas eram especiais, eram delicadas porque me disseram que eu era delicada, mas acho que foi assim com todas da Agência. Quando cresci já começaram a me designar papéis, de forma discreta, como brincadeira e entreternimento, mas desde aquela época estávamos sendo treinadas para nossa missão. 

    Nos ensinaram a cuidar das mais novas (mesmo quando nós éramos as mais novas) e nos ensinaram como sobreviver, ou pelo menos como arranjar a comida. Higiene sempre foi importante, nós tinhamos sempre que estar limpas e cheirando bem. Enquanto cresciamos introduziam novos treinamentos todos os dias, aprendemos a esconder nossos defeitos e a nos disfarçar, aprendemos a ser discretas em um ambiente para não chamarmos muita atenção e aprendemos a conter nossas emoções.

    As roupas para os da nossa espécie sempre foram diferenciadas, era mais fácil nos diferenciar na multidão, mas de um tempo para cá a Agência veio trabalhando em nossas camuflagens, mesmo havendo algumas coisas que não conseguimos esconder sem um disfarce bem trabalhado. Desde pequenas nos vestimos de um jeito especial, embora não muito diferente dos outros, porém, quando a Agência acredita que seja adequado, ganhamos uma armadura. Armaduras foram feitas para nos proteger, é o que normalmente dizem, mas eu acho que na verdade foram feitas para nos esconder (o que na maioria das vezes é sinônimo de proteção).  

    Eu não me incomodo com minhas armaduras, já ouvi algumas de minhas colegas reclamando, mas eu gosto delas e me sinto segura usando, talvez seja porque eu não tenha muitas partes para proteger. Para algumas de nós as armaduras são quase uma segunda pele. 

    Depois nos preparam para o ritual de inicialização, depois começamos a realizar verdadeiras missões, algumas mais novas que outras. Algumas foram bem treinadas antes do ritual, orientadas por anciãs experientes que contavam detalhes sobre o ritual, as mais azaradas nem sabiam o que esperar. 

    Como quase todo ritual que se preze, tem sangue, muito sangue, fomos treinadas a lidar com sangue, depois do ritual temos que saber limpar o sangue de nossas mãos e nossas vestes, somos especialistas em tirar manchas de sangue e nos manter discretas. 

    Quando passamos pelo ritual, continuamos nosso treinamento, na verdade não acredito que um dia esse treinamento vá acabar, aprendemos novas técnicas de disfarce e a ser cada vez mais discretas. Começam a nos ensinar a ser obseradoras, a perceber se tem alguém nos seguindo ou nos olhando (normalmente sempre estão observando). A maioria de nós ganha lâminas que usamos quase diariamente. 

    A Agência acredita que na idade que eu estou eles não precisam mais coordenar nenhum treinamento, agora eu tenho que ser autodidata, aprendendo as coisas conforme cumpro algumas missões, conforme sobrevivo a algumas situações. Apesar de ressaltarem a importância de ter um treinamento rigoroso em defesa, sobrevivência e uso da violência ainda continuam dizendo que sou delicada, para manter as aparências e não deixar nada escapar. 

    Mesmo agora não entendo a razão do nosso treinamento, mas desde que era grande o suficiente para me entender por gente soube que éramos diferentes, nunca chegaram a dizer isso, ninguém na Agência esclareceu sobre os outros seres: se fomos criadas para agradá-los ou torturá-los, mas sabemos desde sempre que não somos iguais. Perguntei à uma companheira de campo o que ela achava, ela disse que era impossível rotular eles no geral, alguns seriam como clientes que teriámos que agradar e outros inimigos a serem eliminados, assim como nós eles eram indivíduos diferentes entre si então não é possível colocar o grupo em um rótulo. 

    Eu não concordo com ela, eles não devem ser vistos como indivíduos porque eles não nos veem como indivíduos, embora cada uma tenha sua singularidade. Acredito que eles todos são nossos inimigos e que apenas nos submetemos a agradar alguns porque a Agência não tem um plano que possa eliminá-los, então temos que abaixar a cabeça e aceitar a situação para sobrivivermos.

    Penso isso porque no passado, antes da Agência ter grande influência e adotar o novo regulamento, os outros seres costumavam ser bem mais cruéis conosco, hoje nossa situação é ruim, já que todas nós os tememos, mas antigamente eles possuiam controle total sobre nossas mentes e corpos. Os regulamentos impostos pela Agência eram muito mais rigorosos, porque na época a Agência era controlada por eles, ou por gente como nós aliada a esses seres.

    Hoje muitas vezes não confiamos inteiramente nas nossas companheiras (só naquelas com que já realizamos muitas missões) e muitas vezes nem chegamos a gostar delas, mas aprendemos a proteger umas às outras. Antes o contato com outras da nossa espécie era raro depois de certa idade, eles incitavam a inimizade entre nós, não queriam que formássemos grupos grandes e mesmo que fossémos iguais queriam que fossémos inimigas, queriam que a gente confiasse apenas neles, mesmo quando eles nos batiam e humilhavam. 

    Ainda tem algumas companheiras que preferem a inimizade e que se aliam aos outros, muitas delas não percebem a importância do novo regulamento da Agência, muitas delas não gostam da Agência, eu e minhas companheiras dizemos que elas foram infectadas pelos outros, mesmo sabendo que eles não são capazes de transmitir esse comportamento como uma doença. 

    Costumamos tirar sarro dos outros, muitas pessoas aqui na Agência fazem isso, mas eu devo admitir que eles são um inimigo inteligente, se uniram muito antes da gente e criaram a própria Agência com mais força, assim que eles assumiram o controle. E mesmo depois de tudo algumas das pessoas da Agência esquece o treinamento e esquecem das companheiras de batalha, colocam os outros na frente, defende os outros em vez de nós, enquanto eles só defendem um partido: aquele que eles criaram. 

    Mas eu nunca vou esquecer o treinamento da Agência e um dia, conseguirei derrotar o inimigo

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